MEMÓRIAS - As Aparições do Gárgula



Na rua Luíz Antony da minha infância, bem como em todos bairros de Manaus, tinham muitas brincadeiras empolgantes como o canga-pé, a bolinha, o pião, o papagaio, manja, barra bandeira, o garrafão, e todas no seu tempo certo. Eram temporadas bem definidas no calendário da molecada. Mas o que me empolgava mesmo eram as brincadeiras de dentro de casa. Primeiro, que não havia televisão, games e outros trecos tecnológicos da modernidade pra nos fazer ficar petrificados diante de um munitor de computador. Segundo, que a gente apelava pra criatividade e a inventividade que produziam brincadeiras inesquecíveis.

Em algumas noites da semana, tirávamos os jogos da caixa grande de papelão e brincávamos de ludo, damas, varetas, firo, baralho, e outros jogos maravilhosos. Em outras noites,fazíamos uma roda na sala de jantar e botávamos pra contar histórias de visagem e do interior. Eram noites que a adrenalina ficava elevadíssima. Geralmente a turma era composta dos meus irmãos e os primos, filhos da tia Branca e José Veloso, que sempre vinham para bater papo depois do jantar.

Mas tinham outras noites mais amedrontadoras, quando todos os adultos saíam para alguma reunião ou ficavam lá fora na calçada conversando nas cadeiras de balanço, até mais tarde. Dentro de casa, enquanto brincávamos entretidos, alguém desligava a chave geral e tudo ficava imerso na escuridão. Contra a luz que vinha de fora, surgia repentinamente a figura medonha do Gárgula, um ser apavorante (pelo menos em minha mente de criança), com uma máscara azul e com sua capa esvoaçante. Quando direcionávamos nossa atenção para o lugar onde estava, já aparecia por trás, veloz como o vento, fazendo um som gultural aterrador. Era a maior gritaria e o coração só faltava sair pela boca.

Certa noite, o Gárgula passou voando e raptou nosso primo, o José Mauricio. Ficamos sobressaltados com o desaparecimento repentino do “Bago”, como era seu apelido. Procuramos reforços entre nós mesmos, mas ninguém podia fazer qualquer coisa para resolver a situação, o jeito foi conseguir a ajuda dos adultos, chamando o tio Veloso, pai da vítima. Português que é, Veloso logo declarou: “A coisa comigo é diferente! Eu vou lá desmascarar esse tal de Gárgula!”, e saiu corajosamente em direção ao pátio que estava envolvido em completa escuridão. Quando de repente, desaba sobre a cabeça de nosso salvador da pátria um balde de água fria, vindo de cima do telhado onde Gárgula mantinha como refém o Bago, imobilizado. Foi preciso a intervenção dos meus pais que logo acabaram com a presepada, e o Gárgula foi devidamente disciplinado e o Bago devolvido aos pais, salvo, mas não sem antes revelar uma fisionomia pálida e o semblante meio aparvalhado.

Mais tarde, depois de muitas noites de sustos, abrindo a gaveta do Tony (nosso irmão mais velho) no velho guarda-roupa do quarto, eu e minha irmã Necil, descobrimos excitados, uma camisa azul com dois buracos, e uma capa que nada mais era que um lençol comum. Ali estavam a prova do crime: O equipamento do Gárgula, agora completamente descoberto. Desvendamos o mistério, e pra nosso espanto, o terrível Gárgula, nada mais era que o Tony, que macomunado com o Alé, nosso outro irmão, tiravam proveito de nossa ingenuidade pra nos infundir medo.

Até hoje, nos escaninhos da imaginação, ainda vejo o vulto furtivo do Gárgula passando velozmente pela janela, contra a luz da rua em noites sombrias quando a casa fica imersa em completa escuridão.
Como meu pai dizia: “O que criança não fizer, ninguém mais faz”

Comentários

Alexandre Silva disse…
Devemos agradecer, primeiramente a Deus e em segundo lugar aos nossos pais que nos deram a oportunidade de sermos nós mesmos, cheios de criatividade e dentro da criação a busca incessante pela arte. O Gárgula nada mais é do que a representação de nossos medos, fragilidades, que acaba por nos tornar mais fortalecidos na insana e infinita busca pela compreensão do que seja a vida. Parabéns pela lembrança tão vívida que cheguei a me arrepiar de medo, vendo no meu pensamento, a sombra do mascarado com sua capa esvoaçante
markeetoo disse…
ehehehe mt legal esse texto. infelizmente hj em dia, essa criatividade é meio prejudicada por passarmos tantas horas na frente de monitores mesmo.
eh legal onde moro, vizinhança pobre, os moleques não tem computador, e até tem um video-game por lá de vez em quando, mas todo dia se vê os meninos na rua brincando e tal... isso eh raro hj em dia...

a família do senhor (o vovô, o senhor e seus irmãos) é um poço de criatividade, deviam ser mt massa as brincadeiras de criança.

mt bem relatado tudo isso ae.
Edjane disse…
Qdo criança tinha um primo que fazia isso, morria de medo, e qdo nos reuníamos para contar estórias de terror, era uma noite em claro q passava.. rsrs.. Mas o verdadeiro terror da nossa infância era eu, usava uma bota ortopédica qdo perdia nos jogos saia chutando todo mundo, até hj as primaradas se lembram das pernas roxas que deixava..rs..

Muito bom relembrar essas coisas, uma pena que hj criança em rua só aprende besteiras, palavrões, aquela inocência já não existe mais.

Adorei seu post, destaque para a “visagem” nunca mais tinha ouvido/lido essa palavra..rs
janssem disse…
Gárgula, nunca tinha ouvido falar disso, muito bom o texto viagem no tempo sem ter vivido isso, " AS APARIÇÕES DE GÁRGULA", da caldo esse personagem!

Até mais anoite!
Gui disse…
Tô começando a ver os textos mais antigos.
Esse é muito engraçado.
Pow, isso é q é infancia!
Realmente devia ser muito legal esses momentos.
Qualquer dia desses agent pod em alguma programação dessas ressucitar o Gárgula, que axa???
Hehehehe

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