RETRATO FALADO



O quadro amarelado e marcado por ranhaduras superficiais foi esboçado e desenhado por mim em Recife em 1979. Já se passaram 31 anos, desde que rascunhei e desenhei esse retrato. Naquele tempo tudo era feito no papel, no lápis, na pena de nanquim, se utilizando de borracha, esquadro, régua e estilete. Não havia ainda o fantástico computador com o indispensável photoshop e o Illustrator.
Eu ainda era magro e solteiro, e havia resolvido finalmente minha crise sentimental aguda (com 18 anos!), agora estava em paz, namorando a Lena, depois de quatro anos turbulentos de idas e vindas, de enrolação (da minha parte, é claro), eu, enclausurado em um quarto/cela do Seminário Presbiteriano do Norte, morrendo de saudade dela.
Haviam fotografias da Lena em tudo que era canto, pelo menos na área que a mim era rerservada, pois dividia o quarto com o Djard, colega de quarto, também de Manaus. Na parede, em álbuns, dentro de livros, debaixo do travesseiro. Na frente de minha prancheta a minha frente, pus um painel gigante com fotos dela tomada de vários ângulos, de todos os tamanhos, sentada, em casa, no pátio, de mailot dentro do igarapé do Sítio Porcaria, sentada no velho tronco tombado sobre as águas correntes, toda brozeada do sol amazônico, parecia um personagem mítico, mistura de índia com sereia. Mas uma me atraia mais, ela sentada na janela da casa do Dom Pedro, olhar no infinito, olhos tristonhos, marca registrada de sua família. Então naquela noite chuvosa, no quarto do seminário, desenhei esse quadro, finalizado com nanquim e o moldurando com papel cartão vermelho. Naquele tempo não imaginava que congelaria aquele momento estanque e o “eternizaria” para a posteridade.
Naquela época, a paixão entre nós se intensificou incontida, e a certeza que nos amávamos nos impulsionou a casar um ano depois. Casamos em julho de 1980. Sem nenhuma condição financeira, viveríamos de fé e amor. Depois da lua de mel (ainda no lendário Hotel Amazonas) fomos morar em Recife em um apartamento perto do seminário, na rua Demócrito de Souza Filho, bairro de Madalena.
Durante nossos primeiros meses em Recife experimentamos intensamente o que a bíblia chama de “divertir-se com a mulher da tua mocidade”, em meio às descorbertas da vida à dois, algumas vezes esbocei no grafite, ela, completamente nua, descansando ou lendo, deitada de bruços, corpo perfeito, exalando o belo por todos os poros. Mas nunca tive coragem de mostrar ou guardar esses esboços.
Tempos bons aqueles…dormíamos em um colchão de espuma sobre uma cama com latas grandes de leite para servir de apoio pra ela não arriar, nossos bens materiais eram bem modestos, a maioria comprados no brexó, porém, mesmo não tendo conforto, como carro na porta, ar condicionado, plano de saúde, celular,
laptop, i-fone, orkut, twitter, etc, sem sombra de dúvidas foi um dos melhores tempos de nossa vida de casados.
Hoje, aqui no escritório de minha casa, 31 anos depois, abrindo caixas de documentos e fotografias antigas, me deparo com essa raridade, um desenho de mais de trinta anos feito por mim, presente do acaso, um desenho desgastado, mostrando que o amor perpassa barreiras intransponíveis, desvenda os labirintos misteriosos do tempo, nivela arestas doloridas e desconfortantes, ameniza as diferenças naturais do relacionamento e se projeta, livre e puro, para a eternidade.

Comentários

Rafael Siza disse…
Bom é ser surpreendido por nossas (boas) ações de um passado não tão distante assim. Melhor ainda quando evidenciadas por singulares expressões.
Parabéns pelo texto e pela declaração de amor.
Mix Martins disse…
que romântico, hein?!
Deus abençoe esse amor pra crescer ainda mais!
AlyCampos disse…
Fantástico!! Se isso não é romance não sei mais o que é...não da pra negar que chorei...que declaração linda!
Marilena Silva disse…
Ontem depois de assistir o filme "te amarei pra sempre" (acho que é esse o título) fiquei refletindo sobre a história de amor do filme e conseüentemente sobre a nossa história e cheguei a conclusão que se pudesse voltar no tempo gostaria de viver tudo do mesmo jeito. E hoje fui surpreendida por esse texto. Te amo, simplesmente te amo muito.
markeetoo disse…
Pow q bonito. O amor de vcs me inspira =]
Belo texto. Quero ser romântico assim com a minha mulher tb hehehe.

Postagens mais visitadas deste blog

NÃO MORRO DE AMORES POR ISRAEL

É MELHOR COMEÇAR MAL E TERMINAR BEM

CRENTE TAMBÉM ADOECE Uma reflexão sobre a passagem repentina de Jorge Rehder